terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Outra visão sobre a grandeza

Sempre me perturbo com a expressão “Não tá fácil pra ninguém!”. Primeiro, por que “fácil” não é uma palavra que deva ser empregada para “viver” neste mundo. Desejaria a todos os meus amigos e familiares, que viver fosse fácil, que ser você mesmo neste mundo, correspondendo às expectativas sociais e familiares fosse “fácil”. Se assim fosse, provavelmente, acabaríamos todos como corretores da Bovespa ou Super Modelos, pois, estes lugares, parecem ser o templo da modernidade capitalista. Quem sabe, um mundo de protagonista de tele novelas de horário nobre, sem coadjuvantes, em uma peça do absurdo. Ou ainda, fácil deva ser, como os herdeiros da aristocracia brasileira que naturalmente tornam-se exemplos em engenharia, medicina ou direito, à revelia de qualquer subjetividade disforme da norma.

Do lugar onde estou, pode parecer fácil para outros. Aqui, homem-branco-de-classe-média-com-acesso-ao-consumo (hífens roubados do CFA). E não nego que seja mesmo um lugar privilegiado, que até me concede tempo para esta reflexão. Mas, não é assim que toca o jazz! O desafinado de nosso mundo é nossa regra. Moucos pelo mercado, confusos em nossa diligencia. Não me parece nada fácil, estar rodeado de contemporaneidade, sem tempo, mas com excesso de coisas, das quais não preciso.

Todo esse caldo clichê, me despertou do texto da Eliane Brum, Vamos precisar de um balde maior, que toca na nossa capacidade coletiva de provocar nossa miséria. Nossas escolhas nos mutilam, e aceitar o pessimismo de nosso modo de vida é fundamental. E justo agora, quando finalmente nós brasileiros íamos entrar na festa do mundo, na gourmetização da vida, na pós-modernidade informacional! Quando nossa classe média finalmente parece submergir da lama de nossa história. Ninguém desejaria perder seus privilégios.

Entretanto, nosso modo de vida já nos mostra muito de nosso problema. Colonizados, herdeiros da periferia do poder, queremos ser tudo que o centro é. Nossa narrativa coletiva (mídia, literatura, cinema) por décadas nos fez desejar estar no lugar do outro. Mas, no mundo não há espaço para 7 bilhões de norte americanos e europeus. E chegamos atrasados na história. Nem em São Paulo há lugar para 20 milhões (aguardemos o êxodo pela água). A Grandeza dos Impérios, nosso último desejo.

Grandeza com G maiúsculo. É neste desejo que apega-se a sociedade ocidental, desde os romanos. É nesta qualidade que está o comportamento dos números das bolsa de valores, sempre associados ao PIB, aos balanços trimestrais e as metas das organizações. Neste adjetivo está a construção das cidades brasileiras. Ser grande, ser forte, ser poderoso, ser o melhor. E o que nos trouxe este desejo? Sempre tão presente no linguagem bairrista quando dizem, “ A melhor capital para se viver”, ou “o melhor sistema de transporte”. Desejosos de reconhecimento, desejosos de valor. [Anedota: fico pasmo ao ver o sorriso dos curitibanos quando algum outro brasileiro diz que aqui se é mais civilizado. Mal sabem eles da realidade dispare destas bandas]. Mas, voltando a grandeza, o que elas nos trouxe?

Com certeza, a grandeza nos deu os EUA. E nada maior que USA Army, o maior empregador do planeta, 3 milhões na folha de pagamento, e sabe lá quantos no caixa dois. Todos para defender a continuidade da grandeza deste Estado. Que passa pelo domínio de uma aristocracia mundial, ligada às industrias de armamentos, energia e commodities. E claro, pelo design de nossa tecnologia, que em realidade, são construídas por outra mão, que se sujeita a trabalhar nesta lógica de insustentável.

No Paraná, a grandeza nos deu Curitiba. Afundada em uma crise, na qual Estado e Prefeitura se utilizam de suas grandezas em um jogo político que sufoca o cidadão e garante continuidade de poder á casta ganhadora. Uma cidade pensada para a grandeza, que esconde seus infortúnios nos vizinhos e periferias sem BRTs.

A grandeza prescinde a alteridade.

E fico me questionando aqui. É por este sentido de grandeza que guio as atitudes? Obviamente, prescindindo os outros ao consumir, trabalhar e sair de casa para a batalha desta cidade?

Sem muita pretensão, me proponho como resposta, a Percepção. Só observar: o pequeno como bom, o menor como mais bonito e simples como completo.

Arthur Ferreira

domingo, 21 de junho de 2009

A MÚSICA DAS ORQUÍDEAS TROPICAIS

PRELÚDIO DOS VIVERES

Astrid estava em pé, em frente ao jardim bem cuidado. Havia dois dias que o jardineiro arrumara-o todo. Ele havia aparado a grama, retirado as folhas mortas e limpado as ervas daninhas. Estava inquieta como de costume ficava quando o marido e os filhos saíam para seus compromissos e tinha que esperar a empregada para passar os afazeres do dia. Pensava nas tarefas das quais deveria encarregar a criada recém contratada, cujo nome ainda não decorara, fato este que lhe deixava com sentimento de culpa, por parecer que não se importava com seres humanos de classe social inferior a sua. Distraiu-se desses problemas menores, sabendo que bastava mandá-la fazer as trivialidades de sempre.

Começou a admirar seu jardim. As linhas harmônicas projetadas por ela, a combinação das cores das bromélias, que nessa primavera estavam mais bonitas que na anterior. Sentiu-se satisfeita com seu senso estético, achava que herdara do avô paterno esse talento para o paisagismo, embora fosse adotiva, pensava que a convivência com ele tinha lhe projetado alguma qualidade para a botânica.

Planejara um tempo atrás preparar florais com seus cultivos, e imaginava quais os efeitos dessas pequenas poções em sua psique, se as marias-teimosas lhe dariam força para suportar seus problemas secretos, passando-lhe qualidades de resistência e adaptação. Talvez fosse a oportunidade ideal para testar. Por outro lado, as estrelícias lhe pareciam também apropriadas, lhe rendendo a força da guerreira que supunha, a planta possuía. Pensava também na orquídea premiada desenvolvida pelo avô, a qual tinha a beleza selvagem, brusca, que impunha sua presença. Tinha receio de tocar-lhe as pétalas, sentia que seria mordida por uma volúpia feminina e seus efeitos acompanhariam-na para sempre. Se fosse mordida, comê-la-ia e viveria todas as consequências desse ultraje. Intuía que o momento ideal de sentir essa volúpia em seu futuro próximo viria.

Despertou de seus devaneios com a presença da empregada. Odiava ser pega de surpresa divagando, era como se estivesse nua. Olhou para a jovem trajada vulgarmente, deu-lhe as ordens e foi para seu dormitório. Tomou uma ducha. Escolheu suas roupas discretas e elegantes, vestiu-se com a blusa de fios bege, a calça de linho cinza claro e os sapatos de tonalidade mais escura que o bege da blusa. Passou batom da cor de seus lábios, um pouco de perfume artesanal, um colar fino de ouro, com um pequeno cristal de quartzo-rosa como pingente. Colocou um anel de ouro branco no dedo médio da mão direita e por fim recolocou a aliança de brilhantes. Ainda não estava à vontade com a presença daquela jovem na sua casa todas as manhãs. Pegou as chaves do carro e avisou que iria sair. Como não havia nada de importante para ser feito, foi ao supermercado.

O TOMO DO ENGANO


Eram quase 19 horas quando Astrid chegou à clínica de psicologia. Na sala da terapia de grupo estavam dois homens de meia-idade conversando sobre os negócios fechados desde a última quarta-feira quando haviam se encontrado na mesma sala. Eles a cumprimentaram com um balançar da cabeça. Duas mulheres vieram ao seu encontro assim que entrou. A mais velha a considerava uma amiga, a outra apenas achava sua companhia agradável. Cumprimentaram-na com um beijo em cada lado da face e palavras de boas-vindas. Dois jovens encontravam-se lendo e não perceberam sua chegada. Do lado de fora da clínica, uma funcionária do local estava aos berros ao celular tentando descobrir por que o coffee-break ainda não havia chegado. Estava furiosa pois dentro de instantes começaria a sessão. Em alguns minutos a sala encheu: trinta e quatro pacientes, dois terapeutas da clínica, a funcionária e uma criança.

Astrid costumava encontrar o terapeuta duas vezes por semana, uma em seção de terapia de regressão e outra na terapia de grupo. Nas seções de conjuntas, todas as quartas-feiras às 19 horas, um tema era estudado pelos partícipes, que por sua vez expunham tanto o conteúdo quanto suas experiências e percepções.

Havia um mês que estavam estudando os arquétipos dos signos do calendário maia e o tema desta sessão em especial eram as qualidades numéricas de ressonância. Ela escolhera o tom 10, o arquétipo de ressonância planetária, tinha pesquisado na internet, no livro do José Argüelles, e também tinha conversado com um amigo que já há muito tempo se dedicava ao conhecimento da América pré-colombiana. Estava realmente preparada para falar sobre essa qualidade e sobre como as pessoas que nascem sob essa influência se preocupam com a humanidade e com questões mundiais, mas em nenhum momento teve oportunidade de discorrer a respeito. Ficou ouvindo os traumas dos outros e sobre suas respectivas transformações pela descoberta desse conhecimento. Não compartilhava da mesma opinião, então pôs-se em silêncio e resignada voltou a pensar nos florais. Sabia que poderia ajudar algumas pessoas mais sensíveis daquele ambiente com seus estudos sobre os experimentos do Dr. Richard Bach.

E durante os instantes em que esteve dispersa dos demais tivera uma revelação: os florais são um medicamento vibracional assim como diz a teoria de vibração ressonante dos símbolos maias. E comparou o mundo psíquico com um instrumento musical: na medida que poderia aumentar a nota musical, também poderia aumentar a vibração de uma qualidade por meio dos florais certos, por outro método, quem sabe a meditação ou o yoga. Porém, a ninguém expôs esse insight.

O terapeuta falou sobre como os Maias se dedicavam ao estudo da astronomia e comentou que seria interessante fazer uma sessão conduzida de introspecção sob a abóboda celeste. Contudo, teriam que se retirar para alguma chácara ou praia a fim de observarem o céu sem a influência das luzes da cidade.

Ao final da reunião, em conversa com o terapeuta, Astrid ofereceu a sua casa na Ilha Grande para fazer a reunião sob o luar, mas disse que achava melhor que fosse durante um fim de semana inteiro, pois a casa ficava a uma hora de barco do Iate clube e a lancha que ela possuía não pode levar mais de dez pessoas por vez, e além disso seria uma boa oportunidade para todos se conhecerem melhor. Ele respondeu que a ideia era muito boa e iria pedir a secretaria que selecionasse a melhor data para todos.

EM UNÍSSONO


Três semanas e dois dias depois, em uma sexta-feira às 17h, quase todos os companheiros de terapia (26 pacientes, os dois terapeutas, a funcionária, o piloto da lancha, duas crianças filhas dos pacientes) e sua família estavam no Iate Clube Cidade dos Príncipes. Ela e o marido estavam organizando a partida para o fim de semana na ilha.

Astrid tinha organizado tudo para receber todas aquelas pessoas, era a primeira vez que receberiam tantas pessoas naquela casa. Organizou a distribuição dos quartos da seguinte forma: quatro pessoas por dormitório, três na edícula desocupada, e os três mais jovens do grupo da terapia dormiriam na biblioteca-escritório. Toda a comida, produtos de higiene, e roupas de cama limpa já tinham sido despachados para a ilha no começo da tarde, juntamente com a empregada e a esposa do caseiro que ficaram encarregadas de arrumar tudo e preparar o jantar daquela noite.

Seu marido William, havia conseguido emprestado o Iate de um amigo. Assim todos seriam transportados de uma só vez. Aproximadamente às 18h 30min desembarcaram no trapiche construído na década de 1940 pela marinha brasileira. O pôr-do-sol tornara as águas douradas, e as luzes esverdeadas dos pequenos postes que ligavam a casa ao trapiche pelo caminho de pedra-sabão faziam os jardins parecerem artificiais de tão perfeitos.

Nessa primeira noite, nada fizeram além de jantar, beber e jogar conversa fora. No sábado, de acordo com o cronograma do terapeuta, todos estariam ocupados com estudos, passeios e no fim do dia com a meditação conduzida por ele.

Astrid estava feliz pois nada havia ocorrido de errado, e nem ocorreria até o fim do encontro. Durante o exercício introspectivo de sábado, deitada com os olhos abertos sobre a maior pedra da praia, sentiu-se em comunhão com o universo, as palavras do terapeuta lhe tocaram profundamente e por alguns minutos esteve em estado de não-ser e não-pensar. Quando despertou, queria voltar àquele estado, mas já não era mais possível. Seu marido que nada experimentara a não ser a dureza da pedra, abraçou-a e disse que iria verificar se o jantar já estava pronto.

Toda a sua vida lhe veio à cabeça assim que seu marido se afastou. A infância solitária que os pais adotivos lhe impuseram, seu grande amor de juventude negado por eles, o marido bonito e óbvio e os filhos, João e Luísa. Pensou em como seria sua vida se tivesse ficado com aquele rapaz de origem indígena. Como tudo seria diferente com ele, sem todas as convenções e aparências que devia manter, sem se preocupar com as origens de cada pessoa que passava pela sua vida, sem se preocupar com aquelas tradições germânicas imposta pela sua criação catarinense. Estava presa a esta vida e se libertar agora provocaria muita dor nas pessoas que mais amava.

No domingo, todos foram a praia pela manhã. Astrid com um copo de suco de pitanga na mão direita e uma taça com granola e frutas secas sobre a mesinha de fibras de sisal, os pés na areia molhada, desabafou com a senhora que lhe considerava uma amiga sobre o que havia refletido na noite anterior. A senhora ouviu e ao final lhe disse que desejava ter a vida dela, pois na sua, fizera tudo pelo impulso e que nada lhe restara, nem filhos, nem marido, apenas amigos e histórias para contar.

TURBULÊNCIA E SILÊNCIO


Pelo telefone William informa que irá se atrasar, perdeu o avião em São Paulo, e o próximo vôo para Joinville apenas sairá no dia seguinte. Astrid fica bravíssima, tinha preparado o prato favorito dele, faisão com purê de maçã. A mesa estava arrumada, havia despachado os filhos para uma excursão para poder ficar a sós com o marido e tentar se desculpar da briga que tiveram na manhã de segunda-feria, após terem retornado da ilha com os colegas de terapia. E estava ainda mais ansiosa porque essa noite tinha a intenção de tomar o floral da orquídea de seu avô. Foi para o jardim se acalmar.

William esta no quarto 713 do Sofitel Ibirapuera acompanhado de uma jovem que conhecera no retorno de Frankfurt. Fazia quase três anos que não traia a mulher e estava decidido a ficar mais uma noite ali com a moça de origem oriental que cheirava a sândalo. Pensa na briga com a mulher e nas palavras dela sobre como ele era transparente, como ela sentia falta do jovem misterioso por quem se apaixonara. Decide viver esse mistério oriental e que se esta na cama nú com a nipônica é culpa da mulher que não quis acompanhá-lo à Europa, dizendo-lhe que estava farta da Alemanha e preferia ir a Balneário Camboriú com as amigas do yoga e da terapia.

Astrid deitada na rede da varanda lê uma revista sobre alimentação vegetariana e pensa que nunca poderá fazer aqueles pratos para o marido nem para os filhos. Todos naquela casa eram convencionais em demasia. Tomou a decisão de jantar sozinha. Vai a adega elétrica Bosch, escolhe um Prosecco Poeti Rose, vai a sala de jantar acende o candelabro, coloca a salada onde estaria o prato do marido, o faisão à sua frente. Serve-se quatro vezes. Toma toda a garrafa. Vai a adega pega outra garrafa de Prosecco, abre, coloca Bob Dylan no Aiwa do living. Ali fica, dança com a garrafa, fica com vontade de chorar por estar sozinha e ser incompreendida por todos daquela casa. Decide tomar o floral. Vai ao closet, abre a primeira gaveta da sua cômoda, e entre os perfumes e maquiagens pega o pequeno frasco de vidro azul com o unguento. Volta à sala, despeja todo o conteúdo do frasco dentro da garrafa do Poeti, dispensa a taça vermelha de cristal, e bebe tudo em longos goles direto da garrafa. Fica tonta e decide sair.

Passa das 14h quando William chega em casa. Apenas a empregada está. Pergunta para ela onde estão todos. Ela não sabe, não havia visto ninguém desde o dia anterior quando acabara o expediente perto das cinco e meia da tarde. Ele lhe ordena que desfaça suas malas. Vai ao telefone, liga para o celular de Astrid, o telefone não atende. Liga para os filhos, nenhum sabe do paradeiro da mãe, e nem poderiam já que, em excursão à serra gaúcha, havia sido solicitado para não ligarem para casa.

William toma banho e vai ao escritório da fábrica no distrito industrial. Quando volta não encontra ninguém, apenas vê a cama do seu dormitório coberta de flores. Muitas estrelícias, algumas rosas, crisântemos, lírios, copos-de-leite e sobre os travesseiros duas orquídeas. Em cada uma um bilhete. Pega os dois. Antes de abri-los pensa na declaração de amor que deveria encontrar, e em como a mulher é romântica mesmo depois de 22 anos de casamento. Sente-se culpado por traí-la. Abrindo o primeiro bilhete vê apenas um desenho, uma mulher nua. No segundo, as frases:

“Ela me libertou!
Não sei quando voltarei.
Vou segui-la até o último suspiro de prazer!
Cuide das crianças.”
Astrid

Arthur Ferreira (04/06/2009)